Alma ferida
Yolanda Soares
Meu pai me tratava como uma joia
rara... Ensinava-me poeminhas e vibrava
quando eu os declamava pra os seus amigos. Eu era o xodó, apesar dos oito filhos. A nossa sintonia era perfeita. Eu adorava me sentir amada e fazia tudo para
vê-lo feliz, e sabia que conseguia. Certo
dia, era cedo ainda, e eu já acordada
brincava sentada no chão da sala. Meu pai sempre esperava na mesa o primeiro
café. Nesse dia mamãe não entendeu o que estava acontecendo, tentou que ele
pegasse o copo e nada! Com os olhos fixos num só lugar, e o corpo torto, meu pai já não conseguia mais
nem se mexer. Ela começou a gritar pelos meus irmãos, que correram feito uns
doidos no vizinho. Não demorou e vi
quando levaram o meu pai...
Naquele dia ele não voltou pra casa. Na manhã seguinte, vi quando um homem vestido de preto bateu na
porta. Minha mãe falou com ele e dali começou a chorar igual uma louca. Fiquei
apreensiva e chorando também, ouvindo minha mãe falar que o meu pai tinha
morrido, mas na verdade eu não fazia ideia do que era morrer e o dia
passou... Minha mãe não tinha mais
forças, grávida de nove meses do nono filho, o choro virou um lamento. No
outro dia, todos saíram, eu e meus irmãos menores ficamos na vizinha. À noite perguntei pra minha mãe.
—Mãe
cadê o meu pai? Quando que ele vai voltar?
—Ele foi pra o céu filha! Disse ela entre
soluços.
Eu achava que o céu era logo ali
e falei tentando um jeito de fazê-la parar de chorar. Aquele sofrimento dela me
deixava triste.
Mãe, ele vai voltar, não chora,
ele nem me levou!
Ela chorou mais ainda!
Minha mãe sabia que o meu pai
nunca mais ia voltar... Mas todos os
dias, ia lá pra o quintal a meia noite e ficava chamando o nome dele. Ela
acreditava que ele podia voltar pelo menos pra ensinar o que fazer... Como criar nove filhos sem ele.
Já eu, fiquei esperando por um bom tempo, acreditando
que a qualquer hora ele ia chegar me abraçando como sempre fazia.
Naquela tristeza toda, mamãe
que já completava nove meses de
gravidez, ficou apreensiva com a falta
de movimentos do bebê. Uma febre alta fez com ela fosse ao médico. Foi quando
descobriu que o meu irmão já estava
morto há seis dias, e por pouco não ficávamos órfão de mãe também.
O tempo passava e cada vez
mais a barra pesava. Ver os
filhos sem ter o que comer, fez com que fosse catar papel na rua... Os vizinhos foram
amigos, dividiram muitas das vezes o pouco que tinham...
O meu irmão mais velho que
tinha 15 anos. Tomou conta da parte que ele achava importante. Ensinar a gente
a trabalhar... Pra ele!
Se não fizéssemos tudo que ele
mandava o cascudo comia.
Certo dia, meu tio, irmão da minha mãe chegou de repente; meio
tardia a visita, mas ele era o rico da família. E logo veio a decepção.
—Tá
louco! Não vou me separar dos meus filhos!
—Quem sabe se o meu afilhado não vai
comigo! Vamos João Batista?
—Não!
Não quero!
—E você, quer ir comigo. Perguntou olhando
pra mim.
Apesar da minha pouca idade, eu
sabia que tinha uma coisa que estava me incomodando, que era o meu irmão me
batendo. E disse sim.
— Minha mãe não acreditava e muito menos os
meus irmãos. Desde a morte do meu pai, eu ficara muito quieta, mal falava.
Aquela alegria que eu tinha ao recitar versos, dançar, cantar... Tinha morrido
junto com ele.
—Eu vou! Falei de novo com voz firme, como quem sabia o que queria.
Meu tio conseguiu convencer a minha mãe que ia
ser bom pra mim. Que eu ia escrever pra
ela e que ele me traria de volta se eu quisesse. Fui ao quarto e coloquei
minhas poucas roupas em uma sacola. Ele me
pegou pela mão e me levou... Na
hora eu não chorei, mas no meio da rua, olhei pra trás e vi a minha mãe aos
prantos. Meu coração doeu.
Chegamos a Petrópolis, fiquei encantada com tudo principalmente com a
cidade. Parecia que tinha saído de um mundo e ido pra outro. Tão diferente era
a minha realidade.
Depois de conhecer a minha tia
e os meus primos, tomei um banho, jantamos e fomos dormir.
Não conseguia, me vi sozinha no sofá da sala, virando pra um
lado e para o outro. Chorei bem baixinho... Me lembrei da minha mãe e dos meus irmãos. A
saudade já era grande desde quando saí de casa.
Meu tio havia saído cedo e quando
chegou me entregou um embrulho e mandou que eu abrisse; Tinha um
par de sapatos, um uniforme de escola e dois vestidos.
—Já te matriculei na escola. Começa amanhã!
No dia seguinte, me acordou às
05h30 min, mandou que eu tomasse um banho e me arrumasse... Pois ele iria me ensinar a rotina, que eu
faria sozinha todos os dias.
—Presta atenção! Dizia ele todo o tempo.
No primeiro dia sozinha, o
dono da padaria ficou totalmente chateado de me ver tendo que levar uma leiteira de 4 litros. Eu era muito franzina, e só tinha sete anos e meio. O
apartamento do meu tio, era num alto, e ele mesmo falava que eram 58 degraus; dizia sempre que era bom pra
engrossar as pernas... Enfim, tomei o
café e desci pra ir pro colégio. Foi um
pouco difícil lembrar o caminho, mas consegui. Quando voltei da aula, meu
almoço estava no prato, na boca da panela. Depois de almoçar fui lavar a louça,
como a minha tia havia me ensinado. E aí, tomar conta da minha prima era a minha
última tarefa do dia.
Senti muito, aquele primeiro
dia, já estava doida que ele acabasse pra eu ir descansar. O meu primo veio me
chamar.
—Meu pai está chamando lá na cozinha.
Quando cheguei na cozinha. Meu
tio segurava uma caneca grande de alumínio. E me perguntou.
—Você está vendo isso aqui?
Olhei dentro da caneca e vi um
risco de leite.
—Então, da próxima vez, tem
que lavar direito!
Num só puxão, tirou o cinto e
me deu a primeira surra de muitas que ainda viriam...
A minha rotina, não era só de
tarefas, era também de rezar... De pensar que qualquer errinho, poderia me custar muito caro.
A Cada reclamação da minha
tia, e dos meus primos, era uma surra. Fora as pancadas que levava do meu primo mais
velho... No fundo, eu era o saco de pancada de pai e filho.
No fim do ano fiquei sabendo na
escola que não ia passar... Sabia que ia apanhar. Eu estudava num colégio
de freiras e que era muito rígido e muito puxado no ensino. Não tinha tempo pra
estudar.. No dia que fiquei sabendo da minha reprovação no colégio, não fui pra
casa, pedi a minha prima que também estudava lá pra ir pra casa dela. E fui.
Como não cheguei em casa, meu tio foi na escola me procurar, mas a freira falou
que eu tinha ido com as meninas ele foi direto me buscar. Tentou me levar, mas
a minha tia pediu e ele sem graça acabou deixando que eu dormisse lá. Nessa ida
ao colégio, ele pegou o boletim e quando
cheguei em casa a surra foi por motivos dobrados. Nunca apanhei tanto! Os vizinhos que eram inquilinos dele, só
faltaram entrar lá pra tomar o cinto da mão dele. Quanto mais eles gritavam palavras como: para
de bater na menina, você não é pai dela, covarde... Mais eu gritava e mais eu
apanhava. Fizeram isso todo o ano. Naquele
mesmo dia, ainda estava sentindo o corpo doendo e a minha alma muito triste. A saudade da minha mãe e dos meus irmãos, aumentava a
cada dia e eu só pensava em ir embora.
De tanto pedir, Deus me
ouviu! Naquele mesmo dia, meu irmão
chegou para me visitar e saber por que eu não escrevi pra minha mãe. Ela está muito
chorosa e preocupada. Disse ele. O que
meu irmão não sabia, era que eu tinha escrito muitas vezes, sempre pedindo pra alguém ir me buscar... Eu estava
com tanto medo, que ele me
deixasse lá que me agarrei a ele
e não larguei mais. Diante dessa atitude
ele não teve dúvidas... Tinha que me
levar dali, o mais rápido possível. Ir embora com meu irmão, me fez acreditar que a vida valeria a pena novamente.
O ônibus entrou na Avenida
Brasil, já era noite, e a cidade toda acesa, parecia estar me dando boas vindas.
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